quarta-feira, 19 de março de 2014

O corpo mais barato do mercado é o corpo NEGRO !

Imagem : Facebook

*Em memória de Cláudia Ferreira da Silva, Mulher Negra, Trabalhadora, morta pela ação da Policia Militar do Rio de Janeiro

Esta semana eu morri um pouco.A minha sororidade gritou, gemeu, urrou como se estivesse sendo atingida em seu âmago. A imagem de uma mulher negra sendo arrastada por uma viatura da PM do Rio de Janeiro acabou com o meu dia, dia este que se iniciou com a Marcha Unificada das Mulheres-BA, espaço onde pude participar ao lado de outras companheiras batucando, dizendo aos quatro cantos que não aceitaremos mais ver as mulheres sendo mortas pelo Machismo.
Primeiro, que é importante compreendermos, que um dos pontos centrais do Racismo são os estereótipos de raça, essas construções sociais feitas sem a nossa participação, sem a nossa opinião, e que determinam se vivemos ou morremos, se somos passíveis de direitos ou não, inclusive negando a nossa inocência, sem ao menos sermos ouvidos.
Esse corpo negro, que tem a construção de sua “corporeidade”, a sua significação, vinculada a um passado escravista, onde sobre o corpo do/a negro/a, repousava todos os direitos do Senhor de explorá-lo e de dar destino a ele conforme a sua vontade, fosse para o castigo físico, trabalho braçal, ou para o estupro, chega aos dias atuais ainda sofrendo a propagação de sua imagem corporal como uma “coisa”, objeto inanimado, que pode sofrer todas as torturas.
Quem não se lembra, do recente caso do jovem espancado por torturadores no RJ, que o amarraram a um poste? O que levou esses jovens a acreditarem que poderiam proceder da seguinte forma? Ou do caso da mulher negra, trabalhadora doméstica, que, ao esperar em um ponto de ônibus o retorno para casa, foi agredida brutalmente por jovens brancos, que posteriormente justificaram o ocorrido com a afirmação de que a tinham “confundido com uma prostituta”?
A resposta que explica o porquê destes agressores, e a Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro, acreditarem que estão livres pra agredir dessa forma um corpo negro é dada por Lima Barreto, na voz de Clara dos Anjos, personagem do livro homônimo, onde a mesma afirma “Não somos nada nesta vida”. Não somos nada para os racistas.Nosso corpo negro é o mais barato, o mais exposto, aquele a quem todos acham que podem ter acesso, a quem todos acham que podem matar.
O que dizer então do corpo negro e feminino de Cláudia, um corpo queem si carregava diversas marcas? A marca de uma mulher negra, trabalhadora, chefe de uma família, que, para além dos 4 filhos, ainda agregava 4 sobrinhos.Uma mulher que certamente não se enquadrava nos padrões “Globo” de beleza e que, por esse “não-enquadramento”, transmitia a mensagem de que o mesmo não precisaria de cuidados.Uma mensagem bem compreendida pela PM do RJ, que, contrariando todos os protocolos internacionais de socorro, jogou o corpo de Cláudia, atingida por um tiro, na parte de trás de um camburão, sem o mínimo de delicadeza que o estado dela pedia.
Casos como estes são mais recorrentes do que se imagina. O auto de resistência, instrumento jurídico criado durante a ditadura e que permite que o/a policial reaja em caso de “resistência”, tem mascarado muitos desses casos e continua permitindo que haja uma lacuna estatística em muitos casos, já que, além de tudo, permite que o policial preste assistência médica ao ferido, assistência essa sobre a qual não se tem o menor controle, e que na verdade pode ser a via final da pessoa que foi “socorrida” na viatura ou camburão.
Diante disso está a importância de os movimentos sociais continuarem pautando a aprovação do PLC 4471/2012, que, além de acabar com o Auto, ainda proíbe que os policiais prestem socorro à vitima, obrigando-os a garantir a assistência médica adequada, uma vez que muitos morrem nos trajetos entre o local do ocorrido e o hospital.
A luta antirracista no Brasil tem tido, ao longo dos anos,grandes desafios.E um desses é reafirmar diariamente a nossa humanidade, pisar firme, bater de frente com os racistas, mesmo quando eles vêm de “revólver engatilhado”. O corpo mais barato do mercado tem sido o corpo negro, é verdade, mas é a esperança de um horizonte de igualdade, onde os/as homens/mulheres negros/negras possam viver plenamente, com o direito de construir uma outra história sobre seu corpo negro,que nos move diariamente.


Luana Soares é uma militante da luta anti-racista. É alguém que não quer ver outras “Cláudias”, arrastadas por viaturas da PM. Isso basta.